Direito do Consumidor e Cláusula de Incolumidade nos Contratos de Transporte Público, em tempos da pandemia da Covid-19.
O transporte, inscrito ao lado da saúde, é direito fundamental do trabalhador, imposto pela Constituição Federal (art. 7º, IV, da CRFB/88). Assim, é certo que o direito ao transporte é indissociável ao dever de prestação sanitária desse serviço, pelo poder público e por suas concessionárias.
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
IV – salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;
Os direitos fundamentais convivem dinâmica e dialeticamente, de modo que só é constitucionalmente possível transporte com higiene, com conforto e com proteção à saúde.
Vivenciamos o período mais grave da epidemia até aqui. A curva da pandemia da Covid-19 continua ascendendo. Não obstante isso, governos e empresariado impuseram a volta à rotina, demonstrando que a vida não é o bem jurídico mais importante para os dominantes do poder.
Em que pese a vontade dos poderes executivos dos entes federativos, as concessionárias de transporte público tem o dever de prezar pela incolumidade do serviço de locomoção dos seus passageiros, respondendo objetivamente caso os exponham a situações de humilhação, de risco sanitário, de medo, de incerteza e de desconforto.
Segundo a OMS, para que seja evitado o contágio do novo coronavírus, a distância segura que deve ser estabelecida entre pessoas é a de um metro, no mínimo. Portanto, as concessionárias devem fiscalizar e providenciar as condições materiais necessárias para que esse aprovisionamento fundamental seja ou possa ser exercido pelos usuários do serviço de transporte.
Caso as pessoas jurídicas de direito privado façam os usuários esperarem por muito tempo em pontos de ônibus ou em plataformas de metrô, possibilitando que os carros realizem as viagens com lotação de gente, ou, caso não pratiquem a regulação de entrada e de saída de passageiros, promovendo a segurança da saúde dos mesmos, contra elas invocamos a Responsabilidade Civil Objetiva.
Contra as empresas que administram e que lucram com o transporte público o cidadão – usuário tem a seu favor o Código de Defesa do Consumidor, lei que determina que a relação entre essas pessoas é a de consumo. E, neste sentido, enfatizamos e sublinhamos:
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
§ 1º O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I – o modo de seu fornecimento;
II – o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III – a época em que foi fornecido.
O Código de Defesa do Consumidor impõe ao prestador de serviço a proteção da saúde e da integridade psicológica de seu consumidor. Aliás, essa determinação é extensão das normas constitucionais fundamentais concernentes à vida, à existência e à saúde das pessoas, e que e se repete na Lei 8.987/95. Nesse gancho legal, observa-se que é obrigação da Concessionária de Serviço Público Essencial prestar o serviço com regularidade e continuidade. O que não ocorre nas grandes capitais do Brasil.
Com a pandemia da Covid-19, a Responsabilidade do Empresariado do Transporte se torna ainda maior (art. 37, § 6º, da CRFB/88).
A realidade, principalmente nas grandes cidades, é a distribuição desigual do serviço de transportes. Bairros da periferia podem ser mais populosos, mas aos seus moradores não são oferecidas as mesmas quantidades de ônibus que são ofertadas aos moradores dos bairros mais próximos do centro comercial da cidade. Igualmente, na cidade do Rio de Janeiro, o serviço de metrô é construído sobre o modelo de linha, não de rede, provocando superlotações e desigualdades espaciais pela cidade. Tais condições ocorrem, de maneira inconstitucional, porque se entende o transporte como mercadoria, de sorte que a oferta desse serviço essencial acaba funcionando de acordo com a lógica do lucro (transportes urbanos de longas distâncias tendem ser menos atraentes para as concessionárias).
Dano moral e Descumprimento da Cláusula de Incolumidade.
Os danos extrapatrimoniais, por serem tradicionalmente chamados de “danos morais”, podem ser classificados em duas espécies: dano moral stricto sensu e dano moral lato sensu. O primeiro decorre da lesão à integridade psicofísica da pessoa — cujo resultado geralmente são sentimentos negativos como a dor e o sofrimento —, enquanto o último resulta da lesão a um atributo da personalidade ou da violação à dignidade humana.
Percebam que há uma dimensão objetiva nesse dano (que o torna presumido), de maneira que a exposição do consumidor a uma situação física comparável à de uma lata de sardinha já é suficiente para que a empresa de ônibus ou de metrô deva indenizá-lo, principalmente no momento da pandemia. Apresento a ementa de um julgado que expõe situação de ausência de incolumidade sofrida por consumidora, no Rio de Janeiro, sem pandemia:
“APELAÇÃO E RECURSO ADESIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR. AUTORA SUSTENTA TER SOFRIDO DANOS EM RAZÃO DE TER FICADO COMPRIMIDA EM BALAÚSTRE VERTICAL DO METRÔ. SUPERLOTAÇÃO E FALTA DE SISTEMA DE REFRIGERAÇÃO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA. IRRESIGNAÇÃO DA RÉ E DENUNCIADA. FATO DE TERCEIRO QUE NÃO POSSUI O CONDÃO DE AFASTAR A RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR POR DANOS ACOMETIDOS AO PASSAGEIRO. AUSÊNCIA DAS EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE. RISCO DO EMPREENDIMENTO. CONFIGURAÇÃO DOS DANOS MATERIAIS E MORAIS. VERBA INDENIZATÓRIA RAZOAVELMENTE FIXADA EM R$ 20.000,00. POR FIM, ANTE O ERRO MATERIAL NA SENTENÇA QUE CONSIDEROU DENUNCIADA COMO CHAMADA E A CONDENOU NA FORMA DO ART. 101, II, DO CDC E ART. 80 DO CPC, TENHO QUE HÁ DE SER ASSEGURADO O DIREITO DE REGRESSO EM FACE DA DENUNCIADA, ATÉ O LIMITE ESTIPULADO NA APÓLICE. CONTUDO, NÃO PODE SER IMPOSTO O PAGAMENTO DA SUCUMBÊNCIA À SEGURADORA QUE NÃO APRESENTOU RESISTÊNCIA A PRETENSÃO DEDUZIDA NA LIDE SECUNDÁRIA. NEGO PROVIMENTO AO RECURSO DE APELAÇÃO E DOU PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO ADESIVO.” (Apelação Cível nº 0291320-62.2011.8.19.0001, 27ª Câmara Cível. Desembargador JDS João Batista Damasceno, em 21-01-2015).
Neste artigo, falo sobretudo de Reificação (do latim res: “coisa”; em alemão: Verdinglichung, literalmente: “transformar algo em coisa” ou Versachlichung, literalmente: “objetificação”), ou de coisificação, que é uma operação mental que consiste em transformar conceitos abstratos em objetos ou mesmo tratar seres humanos como objetos. Não há outro nome para o procedimento de transportar pessoas espremidas umas as outras, no meio da pandemia respiratória mais grave do século, que não seja ou que não dialogue com a Reificação.
SUGESTÃO
Aos que precisam trabalhar e que só podem se locomover via transporte público: caso tenham que entrar em ônibus ou em metrô lotados, agora – no auge da pandemia– sugiro que peçam indenizações por danos morais, através de ajuizamento de ação reparatória contra as concessionárias de serviço público de transporte, nos Juizados Especiais Cíveis (L. 9.099/95).
Se o pedido for de até 20 salários mínimos, não é necessária a contratação de advogado.
Para essa finalidade, sugiro que guardem e juntem comprovante de residência, comprovante de trabalho ou de emprego (com o local do trabalho e do emprego), comprovante de recarga do cartão de passagem (se houver), fotos e filmagens do transporte lotado (com o interessado dentro desse contexto); chamem testemunhas, se houver.
Há direito.
*Foto da capa tirada por Yan Marcelo (RJ).
Fonte: Edgard Monteiro (Jusbrasil)